Jesusalém
Nas palavras do próprio autor, esta produção literária narra a saga de um homem que, perturbado pela morte da mulher, resolve matar o mundo e ir com os filhos e o criado Zacarias Kalash para um sítio longínquo e quase impraticável, erigindo numa casa em ruínas o seu refúgio, que apelida de Jesusalém, cuja tradução daria algo do género: o lugar onde Deus virá para ser perdoado. Não obstante, na tabuleta indicativa de Jesusalém, figuram os dizeres: «Seja bem-vindo, Senhor Deus.»
O objectivo de Silvestre Vitalício, com esta fuga seguida de nova construção é a instauração de um mundo e de uma Humanidade, uma ordem diferente. De facto, a gramática e a sintaxe são outras. Jesusalém seria, por assim dizer, um novo mundo dentro do velho mundo, mas que não receberia deste influências nem qualquer tipo de “contaminação”, como se a liquidação do passado imposta por Vitalício funcionasse como uma redoma protectora. A espera de Silvério Vitalício pelo regresso de Deus dar-se-ia, deste modo, num espaço que não é terrestre nem celeste, que é mais um “não-lugar”.
Os habitantes de Jesusalém resumem-se a Mwanito, o “afinador de silêncios” (que é também o narrador), Ntunzi, o seu irmão mais velho, o pai (Silvério), Zacarias Kalash, um amigo deste, ex-militar, que desempenha as funções de serviçal, um tio que aparece a visitá-los e uma jumenta, a Jezibela.
Reconhece-se incapacidade de Silvério fazer o luto pela mulher (e que está na base do seu exercício de uma enorme opressão em Jesusalém) uma translação da inaptidão de Moçambique em fazer o luto pela guerra civil e do recurso à amnésia colectiva como asilo.
No final, porém, os exilados voltam ao mundo que tinham deixado e os enigmas inaugurais esbatam-se nas inferências finais. No entanto, há que exaltar a reinvenção da língua e a erudição com que Mia Couto fabrica este enredo de realismo mágico africano, tão característico seu.